terça-feira, 24 de julho de 2012

Memórias de um Sgto. de Milicias à luz de Antonio Candido


Memórias de um Sargento de Milícias – Manuel Antônio de Almeida
À luz de Antonio Candido in Dialética da Malandragem

ROMANCE PICARESCO?

Sob uma certa perspectiva, Memórias de um Sargento de Milícias teria recebido influência das características do gênero picaresco espanhol. Entretanto, apesar de certas semelhanças, Antonio Candido aponta algumas diferenças que contradizem essa afirmação:
Em geral, o próprio pícaro narra suas aventuras, o que restringe a perspectiva da realidade ao olhar do narrador. Além disso, a voz da primeira pessoa também aproxima leitor e personagem, o que encanta o leitor e transmite uma falsa candura do pícaro.
Memórias de um Sargento de Milícias é contado em terceira pessoa por um narrador que não se identifica e varia, o que estabelece uma dinâmica à narrativa. Sob esse aspecto o herói é personagem como os outros, embora principal, e não o instituidor do mundo fictício.
Leonardinho, assim como os personagens picarescos espanhóis, é de origem humilde e largado no mundo, no entanto, ele não é abandonado como aqueles, pelo contrário, o destino lhe dá um ótimo pai na pessoa do Compadre. E por isso, falta a Leonardinho um traço básico do pícaro: o choque com a realidade. Na origem o pícaro é ingênuo, mas a brutalidade da vida o vai modificando, tornando-o esperto e sem escrúpulos, quase como defesa. Já Leonardinho, abrigado pelo Padrinho, nasce malandro feito, o que faz parecer que essa é uma qualidade essencial dele, e não um atributo adquirido por força das circunstâncias.
Outra característica do pícaro espanhol é que em algum momento da sua trajetória ele foi criado, e assim, passando de amo a amo, o pícaro vai se movendo e variando sua experiência, vendo a sociedade no conjunto.  No entanto, Leonardinho fica longe da condição servil, tanto que seu Padrinho se ofende quando a Madrinha sugere que ele aprenda um serviço manual. O Padrinho quer vê-lo padre ou formado em direito, e por isso, o livra de qualquer necessidade de ganhar a vida. Dessa maneira, o problema da subsistência não aparece.
Um elemento importante da narrativa picaresca é a aprendizagem com a vida que faz amadurecer. Leonardinho, assim como os pícaros espanhóis vive ao sabor da sorte, sem plano ou reflexão, mas ao contrário deles, não aprende com as experiências. Ele nada conclui ou aprende. O fato do livro ser em terceira pessoa colabora com isso, pois cabe ao narrador fazer as poucas reflexões morais.
Leonardinho também é um antipícaro por não agradar superiores, que constituem a meta suprema do malandro espanhol.
Os romances picarescos são, em geral, obscenos e usam muito palavrão. Já Memórias, tem vocabulário limpo, sem baixeza de expressão, e quando raramente usa, é discreto, ou de tal modo caricatural que o elemento irregular se desfaz com bom humor.

ROMANCE MALANDRO
Leonardinho não seria então o pícaro da tradição espanhola, mas o primeiro grande malandro que entra na novelística brasileira, vindo de uma tradição quase folclórica e correspondendo a certa atmosfera cômica e popularesca de seu tempo no Brasil.
O malandro, como o pícaro é uma espécie de gênero mais amplo de aventureiro astucioso, comum a todos os folclores. Leonardinho se aproximaria de um trisckster.

      O que é um trisckster: Na mitologia, e no estudo do folclore e religião, um trickster é um deus, deusa, espírito, homem, mulher, ou animal antropomórfico que prega peças ou fora isso desobedece regras normais e normas de comportamento. O Trickster pode ser astuto ou tolo, ou ambos. E frequentemente são engraçados e cômicos.
Leonardo pai e Leonardo filho materializam as duas faces do trickster: a tolice e a esperteza. Sob esse aspecto, simplório é o pai e esperto é o filho.
O que parece predominar no livro é o dinamismo próprio dos astuciosos de história popular, a comicidade popularesca. Esta veia originariamente folclórica talvez explique certas manifestações características desse gênero.
Livro inicia com a frase padrão dos contos da carochinha: “Era no tempo do Rei”
Fadas boas: Padrinho e Madrinha, e espécie da fada agourenta: Vizinha
Anonimato de várias personagens, designados pela profissão ou posição no grupo, o que de um lado os dissolve em categorias sociais típicas, mas de outro os aproxima de paradigmas lendários e da indeterminação da fábula, onde há sempre “um rei”, “um homem”, “um lenhador” etc.
Major Vidigal: espécie de bicho papão devorador da gente alegre.

Manuel Antônio de Almeida extraiu dos fatos e das pessoas um certo elemento de generalidade que os aproximou das narrativas folclóricas. Assim, a operação inicial foi reduzir os fatos e os indivíduos a situações e tipos gerais.
A narrativa seria então constituída por um plano voluntario (a representação dos costumes e cenas do Rio) e um plano, talvez na maior parte, involuntário (traços semi-folclóricos manifestados sobretudo nos teor dos atos e das peripécias). Como ingrediente, um realismo espontâneo e corriqueiro, mas baseado na intuição da dinâmica social do Brasil na primeira metade do século XIX.
Além disso, o livro também tem afinidade com a produção cômica e satírica da Regência e primeiros anos do Segundo Reinado – no jornalismo, poesia, desenho e teatro. A obra foi escrita em folhetim entre 1952 e 1953 e seguiu uma tendência manifestada desde 1830, quando começaram a surgir jornaizinhos cômicos e satíricos. Eles se ocupavam da análise política e moral por meio da sátira dos costumes e retratos de tipos característicos, dissolvendo a individualidade na categoria, como tende a fazer Manuel Antônio de Almeida.

ROMANCE DOCUMENTÁRIO?

Para se dizer que esse romance é eminentemente documentário, sendo reprodução fiel da sociedade em que a ação se desenvolve, teria que ser provado que ele reflete o Rio joanino e que esse reflexo daria ao livro seu valor e principal característica. Manuel Antônio de Almeida sugere a presença viva de uma sociedade que parece bastante coerente e existente, e que se liga à do Rio de Janeiro do começo do século XIX. No entanto, o panorama dessa narrativa é amplo. Restrito espacialmente, a sua ação decorrente no Rio, sobretudo no que são hoje as áreas centrais e naquele tempo constituíam o grosso da cidade. Nenhum personagem deixa o seu âmbito e apenas um ou duas vezes o autor vai até o subúrbio, no episódio do Caboclo do Mangue e na festa campestre da família de Vidinha.
Também socialmente a ação é circunscrita a um tipo de gente livre modesta, que seria a pequena burguesia de hoje. Fora isso, há uma senhora rica, dois padres, um chefe de polícia, e bem de relance, um oficial superior e um fidalgo, através dos quais vislumbramos o mundo do Paço. Este mundo novo, despencado recentemente na capital pacata do Vice-Reinado, era então a grande novidade, com presença de rei e ministros, a instalação cheia de episódios entre pitorescos e odiosos de uma nobreza e burocracia transportados nos navios da fuga, entre máquinas e caixotes de livros. Mas dessa nota viva e saliente, nem uma palavra.
Além disso, havia ainda um elemento mais importante do cotidiano da época, que formava a maior parte da população: os escravos. No entanto, eles não tem grande representação no livro, salvo as baianas da procissão dos Ourives, mero elemento decorativo, e as crias da casa de Dona Maria, mencionadas de passagem. Tratado como personagem apenas o pardo livre Chico-Juca, representante da franja de desordeiros e marginais que formavam boa parte da sociedade brasileira.
Sendo assim, é um documentário restrito, pois ignora as camadas dirigentes, de um lado, e as básicas, de outro. Mas o problema pode ser posto de outra maneira, sem ver a ficção como duplicação da realidade. Diante disso, o que interessa à análise literária é saber qual a função exercida pela realidade social historicamente localizada para constituir e estrutura da obra. O romance é constituído por alguns veios descontínuos e arranjados de maneira cuja eficácia varia. (1) os fatos narrados envolvendo os personagens, (2) os usos e costumes descritos, (3) as observações judicativas do narrador e de certos personagens. Quando o autor organiza esses itens de modo integrado, tem-se a impressão de realidade. Quando a integração é menos feliz, parece haver uma justaposição de elementos não suficientemente fundidos, embora interessantes e por vezes encantadores como quadros isolados. Neste último caso é que os usos e costumes aparecem como documento, prontos para a ficha dos folcloristas, curiosos e praticantes da petite histoire.
É possível e mesmo provável que a redação tenha sido feita aos poucos, para atender à publicação seriada, e que o senso de unidade fosse aumentando progressivamente, á medida que a linha mestra do destino do “memorando” se consolidava. Por isso, a primeira metade da obra tem mais aspecto de crônica, enquanto a segunda é mais romance, fortalecendo a anterior, preservando o colorido e o pitoresco da vida popular, sem situá-la, todavia, num excessivo primeiro plano.
Sendo assim, é provável que a impressão de realidade no livro não venha essencialmente dos informes, alias, relativamente limitados, sobre a sociedade carioca do tempo do Rei Velho. O real decorre de uma visão mais profunda, embora instintiva, da função, ou “destino” das pessoas nessa sociedade; tanto assim que o real adquire força quando é parte integrante do ato e componente das situações. Manuel Antônio de Almeida, apesar da sua singeleza, tem uma coisa em comum com os grandes realistas: a capacidade de intuir, além dos fragmentos descritos, certos princípios constitutivos da sociedade – elemento oculto que age como totalizador dos aspectos parciais.

ROMANCE REPRESENTATIVO

Memórias de um Sargento de Milícias é constituído pela dialética da ordem da desordem, que manifesta concretamente as relações humanas no plano do livro. No sistema de relação dos personagens há a construção, dentro da sociedade descrita, de uma ordem comunicando-se com uma desordem que a cerca de todos os lados, bem como a correspondência profunda, muito mais que documentária, a certos aspectos assumidos pela relação entre a ordem e a desordem na sociedade brasileira da primeira metade do século XIX. Nesse livro há a percepção das relações humanas tomadas em conjunto, o autor teve maestria para organizar um certo número de personagens segundo intuições adequadas a realidade social.
Há um hemisfério positivo da ordem e um negativo da desordem, funcionando com dois imãs que atraem Leonardinho. A dinâmica do livro pressupõe uma gangorra dos dois polos, enquanto Leonardinho vai crescendo, ora participa de um, ora participa de outro, até ser finalmente absorvido pelo polo convencionalmente positivo.
A história de Leonardinho seria a velha história do heroi que passa por diversos riscos até alcançar a felicidade, mas expressa, segundo uma constelação social peculiar, que a transforma em história do rapaz que oscila entre a ordem estabelecida e as condutas transgressivas, para finalmente integrar-se na primeira, depois de ter passado pelas experiências da outra. O cunho especial do livro consiste numa certa ausência de juízo moral e na aceitação risonha do “homem como ele é”, mostrando ao leitor uma relativa equivalência entre o universo da ordem e da desordem, entre o que poderia se chamar de bem e mal.
Na construção do enredo essa circunstância é representada objetivamente pelo estado de espírito com que o narrador expõe os momentos de ordem e de desordem, que acabam igualmente nivelados ante um leitor incapaz de julgar, porque o autor retirou qualquer escala necessária para isso.
A ordem e a desordem se comunicam por caminhos inumeráveis que fazem do oficial de justiça um empreiteiro de arruaças, do professor de religião um agente de intrigas, do pecado do Cadete a mola das bondades do Tenente-Coronel, das uniões ilegítimas situações honradas, dos casamentos corretos negociatas escusas.
A sociedade retratada no livro é sugestiva não tanto por causa das descrições de festejos ou indicações de usos e lugares, mas porque manifesta num plano mais fundo e eficiente o referido jogo dialético da ordem e da desordem, assim como era na sociedade daquele tempo. Ordem dificilmente imposta e mantida, cercada de todos os lados por uma desordem vivaz. Sociedade na qual poucos livres trabalhavam e os outros flauteavam a Deus dará, colhendo as sobras do parasitismo dos expedientes, das munificências, da sorte ou do roubo miúdo. Suprimindo o escravo, o autor suprimiu quase todo o trabalho, suprimindo as classes dirigentes, suprimiu os controles do mando. Os personagens acabam circulando do que é lícito para ilícito, e vice versa, sem que possamos diz o que é um ou outro, porque todos acabam indo de um para outro com uma naturalidade que lembra o modo de formação das famílias, dos prestígios, das fortunas, das reputações, no Brasil urbano da primeira metade do século XIX. Esse é um romance social, pois é construído segundo o ritmo geral da sociedade, vista através de um dos seus setores. O senso de realidade da obra não é dado através da representação dos dados concretos particulares, mas sim a sugestão de uma certa generalidade, que olha para os dois lados e dá consciência tanto ao real quanto aos dados do mundo fictício.
A estrutura do livro é constituída por duas direções narrativas, interrelacionadas de maneira dinâmica. De um lado, o cunho popular introduz elementos arquetípicos, que trazem a presença do que há de mais universal nas culturas, puxando para a lenda e o irreal, sem discernimento da situação histórica particular. De outro, a percepção do ritmo social puxa para a representação de uma sociedade concreta, historicamente delimitada, que ancora o livro e ressalta o seu realismo.

O MUNDO SEM CULPA

Ao contrário de quase todos os romances brasileiros do século XIX, Memórias da um Sargento de Milícias cria um universo que parece liberto do erro e do pecado. Um universo sem culpabilidade e mesmo sem repressão, a não ser a exterior que pesa todo o tempo através da figura do Vidigal. Os personagens fazem coisas que poderiam ser qualificadas como reprováveis, mas fazem também outras dignas de louvor, que as compensam. E como todos têm defeitos, ninguém é censurado.
O princípio moral da obra parece ser, assim como os fatos narrados, uma espécie de balanceio entre o bem e o mal, compensado a cada instante um pelo outro, sem jamais aparecerem em estado de inteireza. O livro efetua uma espécie de desmistificação que o aproxima das formas espontâneas de vida social, articulando-se com elas de modo mais fundo. No Brasil nunca houve a obsessão da ordem senão como princípio abstrato, nem da liberdade senão como capricho. As formas espontâneas da sociabilidade atuaram com maior desafogo e por isso abrandaram os choques entre a norma e a conduta, tornando menos dramáticos os conflitos de consciência.
O sentido profundo de Memórias de um Sargento de Milícias é o fato do livro não estar ligado às ideologias reinantes da literatura brasileira da época: indianismo, nacionalismo, grandeza do sofrimento etc. Esse livro tiro o significado da lei e da ordem, manifesta a penetração recíproca dos grupos, das ideias, da atitudes mais díspares, criando uma espécie de terra-de-ninguém moral, onde a transgressão é apenas um matiz na gama que vem da norma e vai ao crime. Tudo isso porque, não manifestado essas atitudes ideológicas, o livro de Manuel Antônio de Almeida é talvez o único na literatura brasileira do século XIX que não exprime uma visão da classe dominante.
Esse fato se evidencia pelo seu estilo, que se afasta da linguagem preferida dos romances de então, buscando um tom coloquial. O autor ficou aberto para as inspirações do ritmo popular. Sendo neutro, ele mostra o outro lado de cada coisa, por exemplo, “O velho tenente-coronel, apesar de virtuoso e bom, não deixava de ter na consciência um sofrível par de pecados”. Daí a equivalência dos opostos e a anulação do bem e do mal.

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