terça-feira, 24 de julho de 2012

Memórias de um Sgto. de Milicias à luz de Antonio Candido


Memórias de um Sargento de Milícias – Manuel Antônio de Almeida
À luz de Antonio Candido in Dialética da Malandragem

ROMANCE PICARESCO?

Sob uma certa perspectiva, Memórias de um Sargento de Milícias teria recebido influência das características do gênero picaresco espanhol. Entretanto, apesar de certas semelhanças, Antonio Candido aponta algumas diferenças que contradizem essa afirmação:
Em geral, o próprio pícaro narra suas aventuras, o que restringe a perspectiva da realidade ao olhar do narrador. Além disso, a voz da primeira pessoa também aproxima leitor e personagem, o que encanta o leitor e transmite uma falsa candura do pícaro.
Memórias de um Sargento de Milícias é contado em terceira pessoa por um narrador que não se identifica e varia, o que estabelece uma dinâmica à narrativa. Sob esse aspecto o herói é personagem como os outros, embora principal, e não o instituidor do mundo fictício.
Leonardinho, assim como os personagens picarescos espanhóis, é de origem humilde e largado no mundo, no entanto, ele não é abandonado como aqueles, pelo contrário, o destino lhe dá um ótimo pai na pessoa do Compadre. E por isso, falta a Leonardinho um traço básico do pícaro: o choque com a realidade. Na origem o pícaro é ingênuo, mas a brutalidade da vida o vai modificando, tornando-o esperto e sem escrúpulos, quase como defesa. Já Leonardinho, abrigado pelo Padrinho, nasce malandro feito, o que faz parecer que essa é uma qualidade essencial dele, e não um atributo adquirido por força das circunstâncias.
Outra característica do pícaro espanhol é que em algum momento da sua trajetória ele foi criado, e assim, passando de amo a amo, o pícaro vai se movendo e variando sua experiência, vendo a sociedade no conjunto.  No entanto, Leonardinho fica longe da condição servil, tanto que seu Padrinho se ofende quando a Madrinha sugere que ele aprenda um serviço manual. O Padrinho quer vê-lo padre ou formado em direito, e por isso, o livra de qualquer necessidade de ganhar a vida. Dessa maneira, o problema da subsistência não aparece.
Um elemento importante da narrativa picaresca é a aprendizagem com a vida que faz amadurecer. Leonardinho, assim como os pícaros espanhóis vive ao sabor da sorte, sem plano ou reflexão, mas ao contrário deles, não aprende com as experiências. Ele nada conclui ou aprende. O fato do livro ser em terceira pessoa colabora com isso, pois cabe ao narrador fazer as poucas reflexões morais.
Leonardinho também é um antipícaro por não agradar superiores, que constituem a meta suprema do malandro espanhol.
Os romances picarescos são, em geral, obscenos e usam muito palavrão. Já Memórias, tem vocabulário limpo, sem baixeza de expressão, e quando raramente usa, é discreto, ou de tal modo caricatural que o elemento irregular se desfaz com bom humor.

ROMANCE MALANDRO
Leonardinho não seria então o pícaro da tradição espanhola, mas o primeiro grande malandro que entra na novelística brasileira, vindo de uma tradição quase folclórica e correspondendo a certa atmosfera cômica e popularesca de seu tempo no Brasil.
O malandro, como o pícaro é uma espécie de gênero mais amplo de aventureiro astucioso, comum a todos os folclores. Leonardinho se aproximaria de um trisckster.

      O que é um trisckster: Na mitologia, e no estudo do folclore e religião, um trickster é um deus, deusa, espírito, homem, mulher, ou animal antropomórfico que prega peças ou fora isso desobedece regras normais e normas de comportamento. O Trickster pode ser astuto ou tolo, ou ambos. E frequentemente são engraçados e cômicos.
Leonardo pai e Leonardo filho materializam as duas faces do trickster: a tolice e a esperteza. Sob esse aspecto, simplório é o pai e esperto é o filho.
O que parece predominar no livro é o dinamismo próprio dos astuciosos de história popular, a comicidade popularesca. Esta veia originariamente folclórica talvez explique certas manifestações características desse gênero.
Livro inicia com a frase padrão dos contos da carochinha: “Era no tempo do Rei”
Fadas boas: Padrinho e Madrinha, e espécie da fada agourenta: Vizinha
Anonimato de várias personagens, designados pela profissão ou posição no grupo, o que de um lado os dissolve em categorias sociais típicas, mas de outro os aproxima de paradigmas lendários e da indeterminação da fábula, onde há sempre “um rei”, “um homem”, “um lenhador” etc.
Major Vidigal: espécie de bicho papão devorador da gente alegre.

Manuel Antônio de Almeida extraiu dos fatos e das pessoas um certo elemento de generalidade que os aproximou das narrativas folclóricas. Assim, a operação inicial foi reduzir os fatos e os indivíduos a situações e tipos gerais.
A narrativa seria então constituída por um plano voluntario (a representação dos costumes e cenas do Rio) e um plano, talvez na maior parte, involuntário (traços semi-folclóricos manifestados sobretudo nos teor dos atos e das peripécias). Como ingrediente, um realismo espontâneo e corriqueiro, mas baseado na intuição da dinâmica social do Brasil na primeira metade do século XIX.
Além disso, o livro também tem afinidade com a produção cômica e satírica da Regência e primeiros anos do Segundo Reinado – no jornalismo, poesia, desenho e teatro. A obra foi escrita em folhetim entre 1952 e 1953 e seguiu uma tendência manifestada desde 1830, quando começaram a surgir jornaizinhos cômicos e satíricos. Eles se ocupavam da análise política e moral por meio da sátira dos costumes e retratos de tipos característicos, dissolvendo a individualidade na categoria, como tende a fazer Manuel Antônio de Almeida.

ROMANCE DOCUMENTÁRIO?

Para se dizer que esse romance é eminentemente documentário, sendo reprodução fiel da sociedade em que a ação se desenvolve, teria que ser provado que ele reflete o Rio joanino e que esse reflexo daria ao livro seu valor e principal característica. Manuel Antônio de Almeida sugere a presença viva de uma sociedade que parece bastante coerente e existente, e que se liga à do Rio de Janeiro do começo do século XIX. No entanto, o panorama dessa narrativa é amplo. Restrito espacialmente, a sua ação decorrente no Rio, sobretudo no que são hoje as áreas centrais e naquele tempo constituíam o grosso da cidade. Nenhum personagem deixa o seu âmbito e apenas um ou duas vezes o autor vai até o subúrbio, no episódio do Caboclo do Mangue e na festa campestre da família de Vidinha.
Também socialmente a ação é circunscrita a um tipo de gente livre modesta, que seria a pequena burguesia de hoje. Fora isso, há uma senhora rica, dois padres, um chefe de polícia, e bem de relance, um oficial superior e um fidalgo, através dos quais vislumbramos o mundo do Paço. Este mundo novo, despencado recentemente na capital pacata do Vice-Reinado, era então a grande novidade, com presença de rei e ministros, a instalação cheia de episódios entre pitorescos e odiosos de uma nobreza e burocracia transportados nos navios da fuga, entre máquinas e caixotes de livros. Mas dessa nota viva e saliente, nem uma palavra.
Além disso, havia ainda um elemento mais importante do cotidiano da época, que formava a maior parte da população: os escravos. No entanto, eles não tem grande representação no livro, salvo as baianas da procissão dos Ourives, mero elemento decorativo, e as crias da casa de Dona Maria, mencionadas de passagem. Tratado como personagem apenas o pardo livre Chico-Juca, representante da franja de desordeiros e marginais que formavam boa parte da sociedade brasileira.
Sendo assim, é um documentário restrito, pois ignora as camadas dirigentes, de um lado, e as básicas, de outro. Mas o problema pode ser posto de outra maneira, sem ver a ficção como duplicação da realidade. Diante disso, o que interessa à análise literária é saber qual a função exercida pela realidade social historicamente localizada para constituir e estrutura da obra. O romance é constituído por alguns veios descontínuos e arranjados de maneira cuja eficácia varia. (1) os fatos narrados envolvendo os personagens, (2) os usos e costumes descritos, (3) as observações judicativas do narrador e de certos personagens. Quando o autor organiza esses itens de modo integrado, tem-se a impressão de realidade. Quando a integração é menos feliz, parece haver uma justaposição de elementos não suficientemente fundidos, embora interessantes e por vezes encantadores como quadros isolados. Neste último caso é que os usos e costumes aparecem como documento, prontos para a ficha dos folcloristas, curiosos e praticantes da petite histoire.
É possível e mesmo provável que a redação tenha sido feita aos poucos, para atender à publicação seriada, e que o senso de unidade fosse aumentando progressivamente, á medida que a linha mestra do destino do “memorando” se consolidava. Por isso, a primeira metade da obra tem mais aspecto de crônica, enquanto a segunda é mais romance, fortalecendo a anterior, preservando o colorido e o pitoresco da vida popular, sem situá-la, todavia, num excessivo primeiro plano.
Sendo assim, é provável que a impressão de realidade no livro não venha essencialmente dos informes, alias, relativamente limitados, sobre a sociedade carioca do tempo do Rei Velho. O real decorre de uma visão mais profunda, embora instintiva, da função, ou “destino” das pessoas nessa sociedade; tanto assim que o real adquire força quando é parte integrante do ato e componente das situações. Manuel Antônio de Almeida, apesar da sua singeleza, tem uma coisa em comum com os grandes realistas: a capacidade de intuir, além dos fragmentos descritos, certos princípios constitutivos da sociedade – elemento oculto que age como totalizador dos aspectos parciais.

ROMANCE REPRESENTATIVO

Memórias de um Sargento de Milícias é constituído pela dialética da ordem da desordem, que manifesta concretamente as relações humanas no plano do livro. No sistema de relação dos personagens há a construção, dentro da sociedade descrita, de uma ordem comunicando-se com uma desordem que a cerca de todos os lados, bem como a correspondência profunda, muito mais que documentária, a certos aspectos assumidos pela relação entre a ordem e a desordem na sociedade brasileira da primeira metade do século XIX. Nesse livro há a percepção das relações humanas tomadas em conjunto, o autor teve maestria para organizar um certo número de personagens segundo intuições adequadas a realidade social.
Há um hemisfério positivo da ordem e um negativo da desordem, funcionando com dois imãs que atraem Leonardinho. A dinâmica do livro pressupõe uma gangorra dos dois polos, enquanto Leonardinho vai crescendo, ora participa de um, ora participa de outro, até ser finalmente absorvido pelo polo convencionalmente positivo.
A história de Leonardinho seria a velha história do heroi que passa por diversos riscos até alcançar a felicidade, mas expressa, segundo uma constelação social peculiar, que a transforma em história do rapaz que oscila entre a ordem estabelecida e as condutas transgressivas, para finalmente integrar-se na primeira, depois de ter passado pelas experiências da outra. O cunho especial do livro consiste numa certa ausência de juízo moral e na aceitação risonha do “homem como ele é”, mostrando ao leitor uma relativa equivalência entre o universo da ordem e da desordem, entre o que poderia se chamar de bem e mal.
Na construção do enredo essa circunstância é representada objetivamente pelo estado de espírito com que o narrador expõe os momentos de ordem e de desordem, que acabam igualmente nivelados ante um leitor incapaz de julgar, porque o autor retirou qualquer escala necessária para isso.
A ordem e a desordem se comunicam por caminhos inumeráveis que fazem do oficial de justiça um empreiteiro de arruaças, do professor de religião um agente de intrigas, do pecado do Cadete a mola das bondades do Tenente-Coronel, das uniões ilegítimas situações honradas, dos casamentos corretos negociatas escusas.
A sociedade retratada no livro é sugestiva não tanto por causa das descrições de festejos ou indicações de usos e lugares, mas porque manifesta num plano mais fundo e eficiente o referido jogo dialético da ordem e da desordem, assim como era na sociedade daquele tempo. Ordem dificilmente imposta e mantida, cercada de todos os lados por uma desordem vivaz. Sociedade na qual poucos livres trabalhavam e os outros flauteavam a Deus dará, colhendo as sobras do parasitismo dos expedientes, das munificências, da sorte ou do roubo miúdo. Suprimindo o escravo, o autor suprimiu quase todo o trabalho, suprimindo as classes dirigentes, suprimiu os controles do mando. Os personagens acabam circulando do que é lícito para ilícito, e vice versa, sem que possamos diz o que é um ou outro, porque todos acabam indo de um para outro com uma naturalidade que lembra o modo de formação das famílias, dos prestígios, das fortunas, das reputações, no Brasil urbano da primeira metade do século XIX. Esse é um romance social, pois é construído segundo o ritmo geral da sociedade, vista através de um dos seus setores. O senso de realidade da obra não é dado através da representação dos dados concretos particulares, mas sim a sugestão de uma certa generalidade, que olha para os dois lados e dá consciência tanto ao real quanto aos dados do mundo fictício.
A estrutura do livro é constituída por duas direções narrativas, interrelacionadas de maneira dinâmica. De um lado, o cunho popular introduz elementos arquetípicos, que trazem a presença do que há de mais universal nas culturas, puxando para a lenda e o irreal, sem discernimento da situação histórica particular. De outro, a percepção do ritmo social puxa para a representação de uma sociedade concreta, historicamente delimitada, que ancora o livro e ressalta o seu realismo.

O MUNDO SEM CULPA

Ao contrário de quase todos os romances brasileiros do século XIX, Memórias da um Sargento de Milícias cria um universo que parece liberto do erro e do pecado. Um universo sem culpabilidade e mesmo sem repressão, a não ser a exterior que pesa todo o tempo através da figura do Vidigal. Os personagens fazem coisas que poderiam ser qualificadas como reprováveis, mas fazem também outras dignas de louvor, que as compensam. E como todos têm defeitos, ninguém é censurado.
O princípio moral da obra parece ser, assim como os fatos narrados, uma espécie de balanceio entre o bem e o mal, compensado a cada instante um pelo outro, sem jamais aparecerem em estado de inteireza. O livro efetua uma espécie de desmistificação que o aproxima das formas espontâneas de vida social, articulando-se com elas de modo mais fundo. No Brasil nunca houve a obsessão da ordem senão como princípio abstrato, nem da liberdade senão como capricho. As formas espontâneas da sociabilidade atuaram com maior desafogo e por isso abrandaram os choques entre a norma e a conduta, tornando menos dramáticos os conflitos de consciência.
O sentido profundo de Memórias de um Sargento de Milícias é o fato do livro não estar ligado às ideologias reinantes da literatura brasileira da época: indianismo, nacionalismo, grandeza do sofrimento etc. Esse livro tiro o significado da lei e da ordem, manifesta a penetração recíproca dos grupos, das ideias, da atitudes mais díspares, criando uma espécie de terra-de-ninguém moral, onde a transgressão é apenas um matiz na gama que vem da norma e vai ao crime. Tudo isso porque, não manifestado essas atitudes ideológicas, o livro de Manuel Antônio de Almeida é talvez o único na literatura brasileira do século XIX que não exprime uma visão da classe dominante.
Esse fato se evidencia pelo seu estilo, que se afasta da linguagem preferida dos romances de então, buscando um tom coloquial. O autor ficou aberto para as inspirações do ritmo popular. Sendo neutro, ele mostra o outro lado de cada coisa, por exemplo, “O velho tenente-coronel, apesar de virtuoso e bom, não deixava de ter na consciência um sofrível par de pecados”. Daí a equivalência dos opostos e a anulação do bem e do mal.

Memórias de um Sargento de Milícias


Memórias de um Sargento de Milícias
Manuel Antonio de Almeida


Capítulo I - ORIGEM, NASCIMENTO E BATISMO


Era no tempo do rei .
Uma das quatro esquinas que formam as ruas do Ouvidor e da Quitanda, cortando-se mutuamente, chamava-se nesse tempo - O canto dos meirinhos -; e bem lhe assentava o nome, porque era aí o lugar de encontro favorito de todos os indivíduos dessa classe (que gozava então de não pequena consideração).  Os meirinhos de hoje não são mais do que a sombra caricata dos meirinhos do tempo do rei; esses eram gente temível e temida, respeitável e respeitada; formavam um dos extremos da formidável cadeia judiciária que envolvia todo o Rio de Janeiro no tempo em que a demanda era entre nós um elemento de vida: o extremo oposto eram os desembargadores. Ora, os extremos se tocam, e estes, tocando-se, fechavam o círculo dentro do qual se passavam os terríveis combates das citações, provarás, razões principais e finais, e todos esses trejeitos judiciais que se chamava o processo.
Daí sua influência moral.
Mas tinham ainda outra influência, que é justamente a que falta aos de hoje: era a influência que derivava de suas condições físicas. Os meirinhos de hoje são homens como quaisquer outros; nada têm de imponentes, nem no seu semblante nem no seu trajar, confundem-se com qualquer procurador, escrevente de cartório ou contínuo de repartição. Os meirinhos desse belo tempo não, não se confundiam com ninguém; eram originais, eram tipos, nos seus semblantes transluzia um certo ar de majestade forense, seus olhares calculados e sagazes significavam chicana. Trajavam sisuda casaca preta, calção e meias da mesma cor, sapato afivelado, ao lado esquerdo aristocrático espadim, e na ilharga direita penduravam um círculo branco, cuja significação ignoramos, e coroavam tudo isto por um grave chapéu armado. Colocado sob a importância vantajosa destas condições, o meirinho usava e abusava de sua posição. Era terrível quando, ao voltar uma esquina ou ao sair de manhã de sua casa, o cidadão esbarrava com uma daquelas solenes figuras que, desdobrando junto dele uma folha de papel, começava a lê-la em tom confidencial! Por mais que se fizesse não havia remédio em tais circunstâncias senão deixar escapar dos lábios o terrível - Dou-me por citado. -Ninguém sabe que significação fatalíssima e cruel tinham estas poucas palavras! eram uma sentença de peregrinação eterna que se pronunciava contra si mesmo; queriam dizer que se começava uma longa e afadigosa viagem, cujo termo bem distante era a caixa da Relação, e durante a qual se tinha de pagar importe de passagem em um sem-número de pontos; o advogado, o procurador, o inquiridor, o escrivão, o juiz, inexoráveis Carontes, estavam à porta de mão estendida, e ninguém passava sem que lhes tivesse deixado, não um óbolo, porém todo o conteúdo de suas algibeiras, e até a última parcela de sua paciência.
Mas voltemos à esquina. Quem passasse por aí em qualquer dia útil dessa abençoada época veria sentado em assentos baixos, então usados, de couro, e que se denominavam - cadeiras de campanha - um grupo mais ou menos numeroso dessa nobre gente conversando pacificamente em tudo sobre que era lícito conversar: na vida dos fidalgos, nas notícias do Reino e nas astúcias policiais do Vidigal. Entre os termos que formavam essa equação meirinhal pregada na esquina havia uma quantidade constante, era o Leonardo-Pataca. Chamavam assim a uma rotunda e gordíssima personagem de cabelos brancos e carão avermelhado, que era o decano da corporação, o mais antigo dos meirinhos que viviam nesse tempo. A velhice tinha-o tornado moleirão e pachorrento; com sua vagareza atrasava o negócio das partes; não o procuravam; e por isso jamais saía da esquina; passava ali os dias sentado na sua cadeira, com as pernas estendidas e o queixo apoiado sobre uma grossa bengala, que depois dos cinqüenta era a sua infalível companhia. Do hábito que tinha de queixar-se a todo o instante de que só pagassem por sua citação a módica quantia de 320 réis, lhe viera o apelido que juntavam ao seu nome.
Sua história tem pouca coisa de notável. Fora Leonardo algibebe em Lisboa, sua pátria; aborrecera-se porém do negócio, e viera ao Brasil. Aqui chegando, não se sabe por proteção de quem, alcançou o emprego de que o vemos empossado, e que exercia, como dissemos, desde tempos remotos. Mas viera com ele no mesmo navio, não sei fazer o quê, uma certa Maria da hortaliça, quitandeira das praças de Lisboa, saloia rechonchuda e bonitota. O Leonardo, fazendo-se-lhe justiça, não era nesse tempo de sua mocidade mal apessoado, e sobretudo era maganão. Ao sair do Tejo, estando a Maria encostada à borda do navio, o Leonardo fingiu que passava distraído por junto dela, e com o ferrado sapatão assentou-lhe uma valente pisadela no pé direito. A Maria, como se já esperasse por aquilo, sorriu-se como envergonhada do gracejo, e deu-lhe também em ar de disfarce um tremendo beliscão nas costas da mão esquerda. Era isto uma declaração em forma, segundo os usos da terra: levaram o resto do dia de namoro cerrado; ao anoitecer passou-se a mesma cena de pisadela e beliscão, com a diferença de serem desta vez um pouco mais fortes; e no dia seguinte estavam os dois amantes tão extremosos e familiares, que pareciam sê-lo de  muitos anos. 
Quando saltaram em terra começou a Maria a sentir certos enojos: foram os dois morar juntos: e daí a um mês manifestaram-se claramente os efeitos da pisadela e do beliscão; sete meses depois teve a Maria um filho, formidável menino de quase três palmos de comprido, gordo e vermelho, cabeludo, esperneador e chorão; o qual, logo depois que nasceu, mamou duas horas seguidas sem largar o peito. E este nascimento é certamente de tudo o que temos dito o que mais nos interessa, porque o menino de quem falamos é o herói desta história. 
Chegou o dia de batizar-se o rapaz: foi madrinha a parteira; sobre o padrinho houve suas dúvidas: o Leonardo queria que fosse o Sr. juiz; porém teve de ceder a instâncias da Maria e da comadre, que queriam que fosse o barbeiro de defronte, que afinal foi adotado. Já se sabe que houve nesse dia função: os convidados do dono da casa, que eram todos dalém-mar, cantavam ao desafio, segundo seus costumes; os convidados da comadre, que eram todos da terra, dançavam o fado. O compadre trouxe a rabeca, que é, como se sabe, o instrumento favorito da gente do ofício. A princípio o Leonardo quis que a festa tivesse ares aristocráticos, e propôs que se dançasse o minuete da corte. Foi aceita a idéia, ainda que houvesse dificuldade em encontrarem-se pares. Afinal levantaram-se uma gorda e baixa matrona, mulher de um convidado; uma companheira desta, cuja figura era a mais completa antítese da sua; um colega do Leonardo, miudinho, pequenino, e com fumaças de gaiato, e o sacristão da Sé, sujeito alto, magro e com pretensões de elegante. O compadre foi quem tocou o minuete na rabeca; e o afilhadinho, deitado no colo da Maria, acompanhava cada arcada com um guincho e um esperneio. Isto fez com que o compadre perdesse muitas vezes o compasso, e fosse obrigado a recomeçar outras tantas.
Depois do minuete foi desaparecendo a cerimônia, e a brincadeira aferventou, como se dizia naquele tempo. Chegaram uns rapazes de viola e machete: o Leonardo, instado pelas senhoras, decidiu-se a romper a parte lírica do divertimento. Sentou-se num tamborete, em um lugar isolado da sala, e tomou uma viola. Fazia um belo efeito cômico vê-lo, em trajes do oficio, de casaca, calção e espadim, acompanhando com um monótono zum-zum nas cordas do instrumento o garganteado de uma modinha pátria. Foi nas saudades da terra natal que ele achou inspiração para o seu canto, e isto era natural a um bom português, que o era ele. A modinha era assim:

Quando estava em minha terra,
Acompanhado ou sozinho,
Cantava de noite e de dia 
Ao pé dum copo de vinho!

Foi executada com atenção e aplaudida com entusiasmo; somente quem não pareceu dar-lhe todo o apreço foi o pequeno, que obsequiou o pai como obsequiara ao padrinho, marcando-lhe o compasso a guinchos e esperneios. À Maria avermelharam-se-lhe os olhos, e suspirou.
O canto do Leonardo foi o derradeiro toque de rebate para esquentar-se a brincadeira, foi o adeus às cerimônias. Tudo daí em diante foi burburinho, que depressa passou à gritaria, e ainda mais depressa à algazarra, e não foi ainda mais adiante porque de vez em quando viam-se passar através das rótulas da porta e janelas umas certas figuras que denunciavam que o Vidigal andava perto.
A festa acabou tarde; a madrinha foi a última que saiu, deitando a bênção ao afilhado e pondo-lhe no cinteiro um raminho de arruda. 

Memórias de um Sargento de Milícias - Manuel Antonio de Almeida

Um pequeno estudo!


Manuel Antônio de Almeida - Dados biográficos
Nasceu no Rio de Janeiro em 1831, filho de um modesto casal de portugueses, e ficou órfão de pai aos dez anos de idade.
Concluiu em 1855 o curso de Medicina, embora nunca tenha exercido a profissão.
Trabalhou como jornalista, no Correio Mercantil, e como funcionário público, administrador da Tipografia Nacional (antecessora da atual Imprensa Nacional), onde conheceu Machado de Assis, na época um aprendiz de tipógrafo.
Candidatou-se a deputado provincial; mas, ao dirigir-se a Campos em viagem eleitoral, faleceu no naufrágio do vapor Hermes, em 1861.
A principal obra produzida pelo autor foi Memórias de um Sargento de Milícias em 1854-55.


Contexto sócio-histórico retratado na obra Memórias de um Sargento de Milícias
A história se passa no começo do século XIX, ocasião em que a família real portuguesa se refugiou no Brasil. Por isso, o romance tem início com a expressão “Era no tempo do rei”, referindo-se ao rei português dom João VI. Portanto, a história relatada é a da sociedade do Rio de Janeiro dessa época.
Em março de 1808, a corte portuguesa foi instalada no Rio de Janeiro. Era preciso acomodar os novos habitantes e tornar a cidade digna de ser a nova sede do Império português. Duas mil residências foram requisitadas, pregando-se nas portas o "P.R.", que significava "Príncipe Regente", mas que o povo logo traduziu como "Ponha-se na Rua". Prédios públicos, quartéis, igrejas e conventos também foram ocupados. A cidade passou por uma reforma geral: limpeza de ruas, pinturas nas fachadas dos prédios e apreensão de animais.
O Brasil passou a condição de Reino Unido a Portugal e melhorias nas relações com outros países favoreceram o desenvolvimento de manufaturas e da economia interna brasileira. O dinheiro que era taxado em impostos ficava aqui e acabava gerando novos empregos e sendo investido – mesmo que visando ao bem dos portugueses – em instituições e obras no Brasil.
D João adotou várias medidas econômicas que favoreceram o desenvolvimento brasileiro: construção de estradas, reformas em portos, criação do Banco do Brasil e instalação da Junta de Comércio.
Do ponto de vista cultural, D. João trouxe a Missão Artística Francesa para o Brasil, estimulando o desenvolvimento das artes em nosso país. Criou o Museu Nacional, a Biblioteca Real, a Escola Real de Artes e o Observatório Astronômico. Vários cursos foram criados (agricultura, cirurgia, química, desenho técnico, etc) nos estados da Bahia e Rio de Janeiro.
Essas medidas, certamente, contribuíram para a transformação da estrutura da cidade do Rio de Janeiro e aceleraram seu processo de urbanização.
As mudanças provocaram o aumento da população na cidade do Rio de Janeiro, entre os quais muitos eram estrangeiros – portugueses, comerciantes ingleses, corpos diplomáticos – ou mesmo resultado do deslocamento da população interna que procurava novas oportunidades na capital.
As construções passaram a seguir os padrões europeus. A família real portuguesa bancou pequenas obras na nova corte, como a construção de três chafarizes, o prédio da Academia de Belas Artes (que hoje se transformou em um estacionamento), e o primeiro prédio do quartel, atual Palácio Duque de Caxias. D. João também permitiu a abertura de novos loteamentos, o que aumentou o perímetro urbano. Novos elementos também foram incorporados ao mobiliário; espelhos, bibelôs, biombos, papéis de parede, quadros, instrumentos musicais, relógios de parede.
A oferta de mercadorias e serviços diversificou-se. A Rua do Ouvidor, no centro do Rio, recebeu o cabeleireiro da Corte, costureiras francesas, lojas elegantes, joalherias e tabacarias. A novidade mais requintada era os chapéus, luvas, leques, flores artificiais, perfumes e sabonetes.
As mulheres seguindo o estilo francês; usavam vestidos leves e sem armações, com decotes abertos, cintura alta, deixando aparecer os sapatos de saltos baixos. Enquanto os homens usavam casacas com golas altas enfeitadas por lenços coloridos e gravatas de renda, calções até o joelho e meias. Embora apenas uma pequena parte da população usufruísse desses luxos.
Foi uma mudança profunda, mas a grande maioria da população carioca não foi contemplada por todas essas transformações, pois era composta de escravos e trabalhadores assalariados em péssimas condições de trabalho.


Consequências para a urbanização do Rio de Janeiro
Desenvolvimento do sistema de transportes e de saneamento; construção de aterros sanitários; instalação do telégrafo urbano; intensificação dos loteamentos; surgimento de indústrias têxteis.
O bonde funcionou como um modificador de comportamento social e estimulou a circulação pela cidade e o uso dos espaços públicos que se converteram em lugar de diversão.
A cidade do Rio de Janeiro tinha cerca de 700 mil habitantes em 1904. Com exceção de seus palacetes de Botafogo e Laranjeiras, era cortada por ruas estreitas e vielas, onde se erguiam prédios e imensos cortiços. Nos morros, amontoados de barracos formavam as primeiras favelas, em que se encontravam a massa pobre, negra e mestiça – afastada da população elegante, a elite. A insalubridade era alarmente e a condição de vida da maioria da população carioca era terrível.
O transporte animal e a ausência de esgotos mantinham as ruas do centro imundas, mas ao longo da segunda metade do século XIX a Companhia Gary, em 1875, passou a ser responsável pela coleta do lixo domiciliar e das vias públicas.
Durante o governo de Rodrigues Alves (1902-1906), cortiços foram derrubados, dando lugar a belas praças, charmosos jardins, largas avenidas e vistosos palacetes.
O resultado foi a deterioração das condições de vida dos trabalhadores. O preço dos aluguéis subiu, e a população mais pobre foi removida do centro para áreas mais distantes, os morros, levando à proliferação das favelas.


Um pouco sobre a obra Memórias de um Sargento de Milícias
Escrito no período do romantismo, é considerado um “romance de costumes” por retratar a vida e os hábitos da sociedade do Rio de Janeiro no início do século XIX. Essa obra desenvolve pela primeira vez na literatura nacional a figura do malandro.
Memórias de um Sargento de Milícias surgiu como um romance de folhetim, ou seja, em capítulos, publicados semanalmente no jornal Correio Mercantil, do Rio de Janeiro, entre junho de 1852 e julho de 1853. Os folhetins não indicavam quem era o autor. A história saiu em livro em 1854 (primeiro volume) e 1855 (segundo volume), com autoria creditada a “Um Brasileiro”. O nome de Manuel Antônio de Almeida aparecerá apenas na terceira edição, já póstuma, em 1863.
O protagonista da história é Leonardinho, que foi abandonado pela mãe, que foge para Portugal com um capitão de navio, e é igualmente abandonado pelo pai, mas encontra no padrinho seu protetor.
As aventuras e desventuras de Leonardo, que o autor apresenta aos leitores com dinamismo e humor – por uma linguagem coloquial -, conduzem o protagonista a apuros dos quais ele sempre se salva, graças a seus protetores.
Apesar do título de “memórias”, o romance não é narrado pelo personagem Leonardo, e sim por um narrador onisciente em terceira pessoa, que tece comentários e digressões no desenrolar dos acontecimentos. O termo “memórias” refere-se, então, à evocação de um tempo passado, reconstruído por meio das histórias por que passa o personagem Leonardo.

Noturno à janela do apartamento - Carlos Drummond de Andrade


Silencioso cubo de treva: 
um salto, e seria a morte.
Mas é apenas, sob o vento,
a integração na noite.

Nenhum pensamento de infância,
nem saudade nem vão propósito.
Somente a contemplação
de um mundo enorme e parado.

A soma da vida é nula.
Mas a vida tem tal poder:
na escuridão absoluta,
como líquido, circula.

Suicídio, riqueza, ciência...
A alma severa se interroga
e logo se cala. E não sabe
se é noite, mar ou distância.

Triste farol da Ilha Rasa.

O trabalhador

O operário no mar - Carlos Drummond de Andrade

Na rua passa um operário. Como vai firme! Não tem blusa. No conto, no drama, no discurso político, a dor do operário está na blusa azul, de pano grosso, nas mãos grossas, nos pés enormes, nos desconfortos enormes. Esse é um homem comum, apenas mais escuro que os outros, e com uma significação estranha no corpo, que carrega desígnios e segredos. Para onde vai ele, pisando assim tão firme? Não sei. A fábrica ficou lá atrás. Adiante é só o campo, com algumas árvores, o grande anúncio de gasolina americana e os fios, os fios, os fios. O operário não lhe sobra tempo de perceber que eles levam e trazem mensagens, que contam da Rússia, do Araguaia, dos Estados Unidos. Não ouve, na Câmara dos Deputados, o líder oposicionista vociferando. Caminha no campo e apenas repara que ali corre água, que mais adiante faz calor. Para onde vai o operário? Teria vergonha de chamá-lo meu irmão. Ele sabe que não é, nunca foi meu irmão, que não nos entenderemos nunca. E me despreza... Ou talvez seja eu próprio que me despreze a seus olhos. Tenho vergonha e vontade de encará-lo: uma fascinação quase me obriga a pular a janela, a cair em frente dele, sustar-lhe a marcha, pelo menos implorar lhe que suste a marcha. Agora está caminhando no mar. Eu pensava que isso fosse privilégio de alguns santos e de navios. Mas não há nenhuma santidade no operário, e não vejo rodas nem hélices no seu corpo, aparentemente banal. Sinto que o mar se acovardou e deixou-o passar. Onde estão nossos exércitos que não impediram o milagre? Mas agora vejo que o operário está cansado e que se molhou, não muito, mas se molhou, e peixes escorrem de suas mãos. Vejo-o que se volta e me dirige um sorriso úmido. A palidez e confusão do seu rosto são a própria tarde que se decompõe. Daqui a um minuto será noite e estaremos irremediavelmente separados pelas circunstâncias atmosféricas, eu em terra firme, ele no meio do mar. Único e precário agente de ligação entre nós, seu sorriso cada vez mais frio atravessa as grandes massas líquidas, choca-se contra as formações salinas, as fortalezas da costa, as medusas, atravessa tudo e vem beijar-me o rosto, trazer-me uma esperança de compreensão. Sim, quem sabe se um dia o compreenderei?



Morte do Leiteiro - Carlos Drummond de Andrade

Há pouco leite no país,
é preciso entregá-lo cedo.
Há muita sede no país,
é preciso entregá-lo cedo.
Há no país uma legenda,
que ladrão se mata com tiro.
Então o moço que é leiteiro
de madrugada com sua lata
sai correndo e distribuindo
leite bom para gente ruim.
Sua lata, suas garrafas
e seus sapatos de borracha
vão dizendo aos homens no sono
que alguém acordou cedinho
e veio do último subúrbio
trazer o leite mais frio
e mais alvo da melhor vaca
para todos criarem força
na luta brava da cidade.

Na mão a garrafa branca
não tem tempo de dizer
as coisas que lhe atribuo
nem o moço leiteiro ignaro,
morados na Rua Namur,
empregado no entreposto,
com 21 anos de idade,
sabe lá o que seja impulso
de humana compreensão.
E já que tem pressa, o corpo
vai deixando à beira das casas
uma apenas mercadoria.

E como a porta dos fundos
também escondesse gente
que aspira ao pouco de leite
disponível em nosso tempo,
avancemos por esse beco,
peguemos o corredor,
depositemos o litro...
Sem fazer barulho, é claro,
que barulho nada resolve.

Meu leiteiro tão sutil
de passo maneiro e leve,
antes desliza que marcha.
É certo que algum rumor
sempre se faz: passo errado,
vaso de flor no caminho,
cão latindo por princípio,
ou um gato quizilento.
E há sempre um senhor que acorda,
resmunga e torna a dormir.

Mas este acordou em pânico
(ladrões infestam o bairro),
não quis saber de mais nada.
O revólver da gaveta
saltou para sua mão.
Ladrão? se pega com tiro.
Os tiros na madrugada
liquidaram meu leiteiro.
Se era noivo, se era virgem,
se era alegre, se era bom,
não sei,
é tarde para saber.

Mas o homem perdeu o sono
de todo, e foge pra rua.
Meu Deus, matei um inocente.
Bala que mata gatuno
também serve pra furtar
a vida de nosso irmão.
Quem quiser que chame médico,
polícia não bota a mão
neste filho de meu pai.
Está salva a propriedade.
A noite geral prossegue,
a manhã custa a chegar,
mas o leiteiro
estatelado, ao relento,
perdeu a pressa que tinha.

Da garrafa estilhaçada,
no ladrilho já sereno
escorre uma coisa espessa
que é leite, sangue... não sei.
Por entre objetos confusos,
mal redimidos da noite,
duas cores se procuram,
suavemente se tocam,
amorosamente se enlaçam,
formando um terceiro tom
a que chamamos aurora.

Um pouco sobre Drummond


- Nasceu em Itabira do Mato Dentro - MG, em 31 de outubro de 1902. De uma família de fazendeiros em decadência, estudou na cidade de Belo Horizonte e com os jesuítas no Colégio Anchieta de Nova Friburgo RJ, de onde foi expulso por "insubordinação mental". De novo em Belo Horizonte, começou a carreira de escritor como colaborador do Diário de Minas, que aglutinava os adeptos locais do incipiente movimento modernista mineiro.
- Ante a insistência familiar para que obtivesse um diploma, formou-se em farmácia na cidade de Ouro Preto em 1925. Fundou com outros escritores A Revista, que, apesar da vida breve, foi importante veículo de afirmação do modernismo em Minas. Ingressou no serviço público e, em 1934, transferiu-se para o Rio de Janeiro, onde foi chefe de gabinete de Gustavo Capanema, ministro da Educação, até 1945. Passou depois a trabalhar no Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional e se aposentou em 1962. Desde 1954 colaborou como cronista no Correio da Manhã e, a partir do início de 1969, no Jornal do Brasil.
- Torturado pelo passado, assombrado com o futuro, ele se detém num presente dilacerado por este e por aquele, testemunha lúcida de si mesmo e do transcurso dos homens, de um ponto de vista melancólico e cético. Mas, enquanto ironiza os costumes e a sociedade, asperamente satírico em seu amargor e desencanto, entrega-se com empenho e requinte construtivo à comunicação estética desse modo de ser e estar.
- Morreu no Rio de Janeiro RJ, no dia 17 de agosto de 1987, poucos dias após a morte de sua filha única, a cronista Maria Julieta Drummond de Andrade.
- Inclinação intelectual para o pensamento de esquerda.
- Fez da própria distância social a medida de seu engajamento, furtando-se por completo à “derrapagem ideológica”.
- Sentimento do mundo: sujeito lírico no confronto com o espaço da grande cidade
- Despertar: tomada de consciência desse eu em relação à nova realidade social com que se defronta.
- Esse despertar é experimentado como algo tardio e, por isso mesmo, com uma boa dose de remorso, levando ao pedido de perdão. Esse pedido, aliás, representa a primeira retratação (no duplo sentido do termo) da culpa social (sentimento do mundo é também sentimento de culpa), que se intensificará nos livros seguintes, de forma cada vez mais violenta.
- Soma-se ainda a alienação do próprio eu lírico, configurada por suas limitações, sua decisão e ação tardias, e o total despreparo para a luta, a ponto de não saber sequer da existência de uma guerra e, portanto, não dispor do básico para enfrentá-la – o que parece, no fim das contas, comprometer irremediavelmente o alcance de seu empenho solidário.
- Anos 40: populismo getulista, aceleração do processo de mercantilização da força de trabalho e das relações sociais no país, ascensão dos governos totalitários, Segunda Guerra Mundial.
- A rua é o espaço “onde se combate”.
- Em função mesmo dessa ameaça das ruas, nosso poeta tenderá a recolher-se em um espaço interior, a partir de onde buscará estrategicamente captar a realidade externa. É, assim, através da janela, que o eu lírico observa a cidade à distância e dirige a ela seu apelo solidário. 

Sentimento do mundo – Carlos Drummond de Andrade


Tenho apenas duas mãos 
e o sentimento do mundo,
mas estou cheio de escravos,
minhas lembranças escorrem
e o corpo transige
na confluência do amor.

Quando me levantar, o céu
estará morto e saqueado,
eu mesmo estarei morto,
morto meu desejo, morto
o pântano sem acordes.

Os camaradas não disseram
que havia uma guerra
e era necessário
trazer fogo e alimento.
Sinto-me disperso,
anterior a fronteiras,
humildemente vos peço
que me perdoeis.

Quando os corpos passarem,
eu ficarei sozinho
desfiando a recordação
do sineiro, da viúva e do microscopista
que habitavam a barraca
e não foram encontrados
ao amanhecer

esse amanhecer
mais noite que a noite.